domingo, 30 de março de 2008

HS, MNL, 2007



Pousa devagar a enxada sobre o ombro

Já cavou muito silêncio



Como punhal brilha em suas costas

A lâmina contra o cansaço.


Daniel Faria

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Homens que são como projectos de casas
Em suas varandas inclinadas para o mundo
Homens nas varandas voltadas para a velhice
Muito danificados pelas intempéries
Homens cheios de vasilhas esperando a chuva
Parados à espera
De um companheiro possível para o diálogo interior

Homens muito voltados para um modo de ver
Um olhar fixo como quem vem caminhando ao encontro
De si mesmo
Homens tão inesperados tão desprevenidos
Para se receber

Homens à chuva com as mãos nos olhos
Imaginando relâmpagos
Homens abrindo lume
Para enxugar o rosto para fechar os olhos
Tão impreparados tão desprevenidos
Tão confusos à espera de um sistema solar
Onde seja possível uma sombra maior

Daniel Faria

Kosso Eloul, Time, 1973
Breakwater Park, Kingston, Ontario


Esta coisa de mudança de hora é uma chatice.
Acordar mais cedo, almoçar mais cedo, a apetência para trabalhar até mais tarde, e depois, a tendência para também ficar acordada até mais tarde... o que implica menos horas de sono e uma grande bola de neve de “preguicite” aguda de manhã.
Se já era difícil acordar às 8h para ir trabalhar e raro conseguir chegar às 9h, imagine-se agora às 7h…
Não há relógio biológico que aguente, e isto é uma grande violência.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Cecilia Paredes, Gragola III, 2003



O fio de um cabelo

Abandono a casa o horto o lugar à mesa
o casaco de que gostava, sobre o leito dobrado
esta verdade quase banal
que toda a vida fui

Não abro a porta quando batem
(às vezes batiam só por engano)
não avalio o balanço das certezas
o que separa uma forma da outra
sempre me escapou

Ontem começava a clarear
o ar frio que vinha dos campos
julguei-o de passagem e afinal
era um segredo que meu corpo
de uma vez por todas contava
ao meu corpo

Mas quando tombei sobre a terra
perdido como o fio de um cabelo
(aqueles que primeiro caem
da cabeça de um rapaz
e por não serem notados
são mais perdidos ainda)
estavas junto de mim

Lançaste ao fogo cidades
afogaste os exércitos
no vermelho mar da sua ira
hipotecaste terras tão preciosas
para estares junto de mim


José Tolentino de Mendonça

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era tudo mais perfeito se fosse sempre assim.

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terça-feira, 25 de março de 2008


[...]

4.
Se te puseres à escuta a magnólia pode ser uma árvore de fruto –
A escuta enche-nos de sumo como um poço no meio dos pátios.
A magnólia enxerta-me nos pensamentos, é um profundo
Rumor na minha carne, a linha que me vai da mão
A outra mão. Ela não tem medo
De aproximar-se quando minha mãe me pega ao colo.
Ela levanta-me da terra
Como os tufões e os bandos dos pássaros.


Daniel Faria
Do ciclo das intempéries
Poesia, 1.ª edição, Lisboa, Quasi, 2003

segunda-feira, 24 de março de 2008

Jennifer Shaw, Floating Clovers, 2001.

1.
Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas – podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita,
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia – e essa é a verdade – cresce sempre
Apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo,
Mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.

A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão.

Daniel Faria
Do ciclo das intempéries

Poesia, 1.ª edição, Lisboa, Quasi, 2003

domingo, 23 de março de 2008

O Lado Selvagem

A felicidade não se encontra nas outras pessoas. A felicidade está (ou tem de estar), naturalmente, dentro de nós próprios, embora ela só se torne completa, absoluta, perfeita, se compartilhada… concordo, em absoluto.

Poderia dizer mais sobre o instinto mais básico de cada um de nós, sobre o lado mais selvagem, sobre a necessidade de, por vezes, fugir da vida artificial, material e frenética da cidade e do mundo em que vivemos, sobre o colocarmo-nos à prova, mas não vou. Fico-me por aqui.

sexta-feira, 21 de março de 2008

MNL, 21.03.2008


Catedral verde e sussurrante, aonde
a luz se ameiga e se esconde
e aonde, ecoando a cantar,
se alonga e se prolonga a longa voz do mar:
ditoso o "Lavrador" que a seu contento
por suas mãos semeou este jardim;
ditoso o Poeta que lançou ao vento
esta canção sem fim...

Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
rei D. Dinis, bom poeta e mau marido,
lá vem as velidas bailar e cantar.


Encantado jardim da minha infância,
aonde a minh'alma aprendeu;
a música do Longe e o ritmo da Distância
que a tua voz marítima lhe deu;
místico órgão cujo além se esfuma
no além do Oceano, e onde a maresia
ameiga e dissolve em bruma,
e em penumbra de nave, a luz do dia.
Por estes fundos claustros gemem
os ais do Velho do Restelo...
Mas tu debruças-te no mar e, ao vê-lo,
teus velhos troncos de saudades fremem...

Ai flores, ai flores do Pinhal louvado,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal louvado,
são as caravelas, teu corpo cortado,
é lo verde pino no mar a boiar.

Pinhal de heróicas árvores tão belas,
foi do teu corpo e da tua alma também
que nasceram as nossas caravelas
ansiosas de todo o Além;
foste tu que lhe deste a tua carne em flor
e sobre os mares andaste navegando,
rodeando a terra e olhando os novos astros,
ó gótico Pinhal navegador,
em naus, erguida, levando
tua alma em flor na ponta alta dos mastros!...

Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que grande saudade, que longo gemido
ondeia nos ramos, suspira no ar!

Na sussurrante e verde catedral
oiço rezar a alma de Portugal:
ela aí vem, dorida, e nos seus olhos
sonâmbulos de surda ansiedade,
no roxo da tardinha,
abre a flor da Saudade;
ela aí vem, sozinha,
dorida do naufrágio e dos escolhos,
viúva de seus bens
e pálida de amor,
arribada de todos os aléns
de este mundo de dor;
ela aí vem, sozinha,
e reza a ladainha
na sussurrante catedral aonde
toda se espalha e esconde,
e aonde, ecoando a cantar,
se alonga e se prolonga a longa voz do mar.

Afonso Lopes Vieira, Ilhas de Bruma


21 de Março
Dia Mundial da Floresta, Dia da Árvore, Dia Mundial da Poesia

quinta-feira, 20 de março de 2008

Tríptico da Paixão, vitral, Sala do Capitulo
Mosteiro de Santa Maria da Vitória, Batalha, 1514


Inicia-se mais uma vez a celebração de um ciclo, um dos mais importantes para os Cristãos, cujo derradeiro momento se inicia esta noite, terminando daqui a cerca de sessenta e três dias (se não me falham as contas) com o Corpo de Cristo.
Até ao martírio e crucificação de Jesus Cristo, a Páscoa era celebrada para festejar a libertação e fuga dos escravos Judeus do Egipto, ao cabo de uma série de acontecimentos, que conhecemos dos velhos filmes dos anos 50 e 60, sobre a vida de Moisés, as 7 pragas do Egipto, as Tábuas dos 10 Mandamentos, a Arca da Aliança, e por aí fora (para quem não conhece e nunca se debruçou verdadeiramente sobre estas histórias, aconselho vivamente a conhecer, a olhar e a ler parte do Velho Testamento e parte do novo, não com os olhos do preconceito e desconfiança, mas de peito aberto, como quem olha para um documento histórico - ao qual ter-se-á de extrair o verdadeiro significado das palavras e distinguir o que é verdadeiramente importante - um romance, uma epopeia, e por fim, mas não menos importante, uma fonte espiritual universal).
Depois da Paixão de Cristo a Páscoa celebra a Ressurreição de Jesus Cristo. Este morre a uma sexta-feira, crucificado, para no Domingo se concretizar a sua Ressurreição.
Assim, a Páscoa celebra a Fé na Ressurreição, no renascer para a vida, e em último caso, na imortalidade do Espírito, para os crentes, os justos e os verdadeiros discípulos de Cristo.

terça-feira, 18 de março de 2008

Alison Kinnaird, Contraflow


Quatro
perguntas, seguidas de um epílogo ao escultor José Rodrigues
1. Tens na
ponta do lápis uma chave
para abrir o poema.
Por onde é que ela o abre?

2. Se um besouro de asas
translúcidas entrasse
agora no poema
– tu deixavas?

3. Sabes
como se esculpe um poema
fechado a sete chaves?

4. E se uma pomba
roçasse o ângulo
raso do poema
– prendê-la-ias?
Tu que esculpes
com mãos de água o corpo
e a sombra dos dias.

Albano Martins

segunda-feira, 17 de março de 2008




You Are Sudoku



You are simple, modern and elegant.

You're not that difficult to figure out, but very few people truly get you.

You approach the world with a pure logic that most people will never grasp.

Grãos de polén, ampliação 500x.
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Hoje a minha médica perguntou-me se, por algum acaso, tinha mudado de profissão, se caso adormecesse, havia algum risco de ir contra alguém ou alguma coisa, ou cair para cima de alguma coisa ou alguém… respondi que, amanhã, só se fosse para cima do computador, o que poderia representar um grave problema ou então uma grande oportunidade para começar a escrever relatórios “a la carte” com todos os predicados e sem os floreados e considerandos que certas pessoas merecem… a sangue frio.
Ao invés disso, quer-me parecer que amanhã vou ter um dia com menos alergias, mas altamente improdutivo e a fazer jus ao nome que tantas vezes nos chamam. O que vale é que quinta-feira de manhã são as últimas horas de trabalho. Até lá, lá me vou roçando pelas paredes, o que é bem melhor que roçar noutras partes menos próprias, ou até mesmo não emitir som.

domingo, 16 de março de 2008

Fred Williams, Riverbed, pormenor, 1978.

O dia nasceu lá fora, o sol, o calor, as flores dos pinheiros a rebentar em enormes bolhas de pó, os tojos pintam a paisagem de amarelo, as andorinhas chilreiam… inspiro profundamente, agora com os canais todos desobstruídos, o ar entra profundamente, fecho os olhos e tudo parece tão mais simples… o mar verde deixa-se tocar na borda da areia da praia, e o iodo espalha-se em volta.
Apeteciam-me férias, uns dias de descanso.
Calor e praia, tirar a roupa, deitar sobre a toalha e ficar a ouvir os silêncios da praia, ao sol. Levantar e mergulhar no mar, voltar depois…
Sentar na esplanada de uma praça histórica de uma cidade cosmopolita e bonita, a estalar de calor e brisa fresca, saciar a sede numa bebida fresca, e trocar palavras com desconhecidos.
Subir uma montanha, mochila às costas com o farnel para dois dias e perder-me na imensidão do mundo, no ventre da natureza.
Posto isto e depois de umas semanas frenéticas, chegar ao dia de hoje e levantar sem ter de fazer nada é um pequeno milagre (possa embora, se quisesse, fazer muita coisa que há para fazer).
Apetece-me vegetar, aqui à mão, frente ao mar, colocar os óculos de sol e ler mais umas páginas de um livro, deixar-me existir nestas horas vagas de tempo e de presenças até ao fim do dia.

domingo, 9 de março de 2008

The Cure, Live at Valencia, City of Arts and Sciences
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Nem uma nota fora do sitio!
É caso para dizer que quanto mais velho, melhor, e apesar do frio de rachar (cerca de 3 graus) valeu mesmo a pena.
Chegar àquelas velhas sensações dentro do corpo que só se sentiam quando éramos adolescentes… sentir a musica dentro e um turbilhão de sensações adicionais, recordar. Um encontro inesperado que me fez reviver uns bons anos e me revigorou por mais uns quantos.
Ao chegar a casa apercebo-me que tenho de mandar reparar o gira-discos e desempoeirar os velhos LP's.

The Cure, recomendam-se!


Poderia deixar aqui um sem número de músicas para ouvir... deixo esta que se ouve à entrada, do album Disintegration (um dos que mais gosto) e estas duas aqui abaixo, uma do Disintegration e outra do Kiss me Kiss me Kiss me.

E posto isto é compreensivel porque é que The Cure são intemporais.







Lovesong




Just Like Heaven
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domingo, 2 de março de 2008



O coração da mulher é alto
Mas nem só por isso a mulher oscila
Ela é como o navio mercante
Que chega carregado de grão

A mulher é o tear dentro da vida
Nem só por isso a mulher é mais que a vida
Ela é como o navio mercante
Que chega carregado de grão

Elogio da mulher (Pr 31, 14)
Se fores pelo centro de ti mesmo
HOMENS QUE SÃO COMO LUGARES MAL SITUADOS

Daniel Faria

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Entrei na sombra como alguém que via
Entrei devagar no ritmo de um salmo
E havia luz
Era uma luz como uma árvore quando cresce
E estando em flor era um dia inteiro

Entrei com a sombra pela cintura como algo conquistado
Com o sangue a escorre-me para os pés. Mas mesmo
Que não sangrasse eu entrava em triunfo
Inteiramente vencido

Entrei para um laço sem saída porque era um nó aberto
E tinha os pés regados pelo sangue que dá vida
Tinha umas sandálias de sangue para caminhar livre

Entrei em morte sucessiva no que vive
Era a luz de uma árvore quando cresce
E se ensombra para não ficar sozinha

Uma espécie de anjo ferido na raiz
HOMENS QUE SÃO COMO LUGARES MAL SITUADOS

Daniel Faria