quarta-feira, 30 de julho de 2008

Joseph Beuys


Tenho os quadros no chão. Um monte de telas e molduras com colorido e textura encostadas à parede, esperando. Caixotes de cartão, pouco tempo para os movimentar, e pó.


Estou cansada. O dia correu bem. Está mais uma etapa vencida com sucesso.
O cansaço faz-me baixar à terra, assentar os pés e desarmar, repensar, “retrospectivar”, se é que este verbo existe, o sentido. É estranha esta sensação, de esvaziamento, de nudez, de desprendimento, de desenquadramento racional.
Apetecia-me cair, assentar, ameigar-me onde já fui feliz. Um microcosmos pulmão e sangue.
Mas as tempestades passam, e à sua volta deixam um rasto de destruição. Com elas levam, por vezes, os lugares onde já fomos felizes. Deixam esta sensação de despojamento e de melancolia.
Sinto saudades. Um sentimento de desenraizamento, de pertença estranho, como se algures tivesse deixado uma parte, uma parte significativa, desprezada e maltratada, mas que é nossa.
Deixei.

O cansaço quebra-nos a vigília, a vontade. A nostalgia apodera-se do pensamento. Ou não sabemos muito bem o que se apodera da razão. Sabemos que algo se apodera de qualquer coisa. De repente o mundo muda de sítio e o peito fica pequeno.
Contra isto, uma noite de sono, um sonho, e esperar que o verão passe depressa.

Dizia eu que tenho os quadros no chão, a paixão encerrada num traço, num ponto final.

sábado, 26 de julho de 2008




A cor das paredes

Preparar uma casa para viver pode, afinal, ser muito mais difícil do que à partida parece.
O calvário de pensar, conjugar e escolher coisas, a cor dos móveis, o desenho, pensar a funcionalidade versus necessidade versus estética versus qualidade versos custo.
Pensar dimensões e arrumação no espaço, prioridades, etc., etc., etc..
Se há uns tempos o Ikea era opção, agora que vou ao pormenor, já não é.
Além dos magotes de gente (que eu até família encontrei hoje no Ikea, vá-se imaginar) a qualidade dos materiais e dos acabamentos deixa a desejar e não há nada do que quero, realmente.
Se juntarmos o facto de sermos nós a montar… só pode correr mal.
Assim, segue-se o calvário de ter de desenhar os móveis e mandar fazer, rezando para que no final tudo resulte bem.
A seguir vem a parte dos electrodomésticos e depois os complementos. A juntar ao caos das escolhas, a falta de tempo, por isso, lá para o natal tenho a casa pronta.
Neste momento (dois meses depois) já tem água e luz. Não é mau.

segunda-feira, 21 de julho de 2008


...aparentemente, sou uma sábia coruja!

A coruja é uma ave noturna, símbolo do conhecimento racional. Você é uma pessoa que gosta de estudar e fazer uma reflexão sobre todos os aspectos de sua vida. Seu dia a dia é bastante regrado. Ai, se alguma coisa estiver fora do lugar ou, dando errado. A coruja não gosta de arriscar e investe apenas naquilo que é certo para ela. Aqui vai uma dica: se você mergulhar no seu interior, descobrirá que tem grande percepção do oculto.


ou então

... um cachorro, no bom sentido da palavra, é claro!
O cachorro é o amigo inseparável. Ele não consegue ficar longe dos amigos e adora festas e encontros. É o companheiro fiel que toda pessoa gostaria de ter sempre ao seu lado. Outra característica canina é ser o vigilante de sua casa. Você realmente gosta de tomar conta da sua família e proteger quem está ao seu redor. Coitado de quem invadir o seu espaço.
Entretanto, se você parar de pensar, encontrará uma certa dificuldade em ficar sozinho. O cachorro é capaz de ajudar os outros, mas não sabe lidar direito com os seus problemas. Talvez seja preciso abrir sua conexão ao divino. Afinal, o cão conhece melhor do que ninguém o mundo do Além.

domingo, 20 de julho de 2008


Grand Central - Platform 2, Rob Gardiner

O Lobo nos Sonhos

Não feches a luz
tenho medo dos meus sonhos
medo de entrar pela porta errada.

Nos meus sonhos
os dentes caem-me
e eu fico sozinha a gritar no escuro.

Não feches os olhos
não deixes fechar os meus
não quero ir por maus caminhos

Nos sonhos proibidos
não há ninguém
toda a gente fugiu ou está prestes e fugir
e eu não tenho cabelos.

Não apagues a luz
não quero ficar sem dentes
uma coisa dolorida à deriva no mais profundo escuro.

Nos sonhos mais terríveis
não há sol
e todos me estranham
debaixo de uma lua gelada.

Não feches a luz
não sabes nada, não fazes ideia
o frio que está, a falta de ar,
o brilho que é, o maligno luar.

Sara Monteiro – Big Ode #5

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Sigalit Landau, standing on a watermelon in the dead sea, 2004

Queria falar sobre a metamorfose, sobre a mudança mais ou menos profunda, sobre os pontos que se marcam e se espera ultrapassar, sobre o como julgava poder ter, enfim, algum descanso e satisfação uma vez ultrapassados, uma vez realizada a mudança que nos haveria de conduzir a uma metamorfose interior, derradeira e plena de sentidos.

Pontos marcados no horizonte dos dias que anda estão para vir, e um a um, vamos picando, ultrapassando.

Hoje uma amiga falava-me sobre a mudança vertiginosa da minha vida nos últimos meses, mas a mudança há anos que corre, embora algumas vezes vagarosamente. Agora, porém, nota-se mais, pois foi repentina, em vários aspectos.

Por um lado, o resultado de uma espera paciente, desesperante e angustiante, mas que me ensinou a ser perseverante, solidária e honesta, comigo e com os outros, e acima de tudo a ter Fé e a caminhar orientando-me através dos princípios em que acredito. Perdi muita coisa pelo caminho, pois perdem-se sempre coisas quando caminhamos, mas ganham-se outras, e sem querer equilibrar as coisas, pois não se comparam as que perdi às que ganhei, sinto-me triste, mas aliviada e um pouco feliz ao mesmo tempo, por ter chegado ao fim, e ter feito o que estava correcto.

Por outro lado o reconhecimento e a oportunidade de fazer algo que sempre quis, ambicionei, embora não esteja propriamente feliz como imaginaria estar. Acho que estou serena e equilibradamente pronta para mais um desafio, mas não estou eufórica.

Assim, a metamorfose, essa, não sei bem onde está, embora eu comece a chegar à conclusão que, de facto, não sou de grandes euforias e paixões, que tudo em mim acontece de facto com serenidade e segurança, e que os picos de emoções que potenciam uma verdadeira sensação de mudança não acontecem.

Ou isso ou uma fase de hibernação da paixão.

domingo, 13 de julho de 2008

Doris Salcedo - Shibboleth 2007

havia um post para hoje
hoje é já tarde demais, e o cansaço corrói a alma e a vontade
amanhã...
não é sempre amanhã?
é sempre amanhã, e assim o tempo foge e um anjo voa... até às entranhas

sábado, 12 de julho de 2008

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FMI - José Mario Branco

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Vou, vou-vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um pouco especial, trata-se de um texto que foi escrito, assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não é muito actual. Eu vou-vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam ser já não muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa atenção do que me parece ser o essencial neste texto.
Chama-se FMI.
Quer dizer: Fundo Monetário Internacional.
Não sei porque é que se riem, é uma organização democrática dos países todos, que se reúnem, como as pessoas, em torno de uma mesa para discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a todos...
É o internacionalismo monetário!



FMI

Cachucho não é coisa que me traga a mim
Mais novidade do que lagostim
Nariz que reconhece o cheiro do pilim
Distingue bem o mortimor do meirim
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Há tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar por aí a dentro, analisar, e então
Do meu 'attachi-case' sai a solução!

FMI Não há graça que não faça o FMI
FMI O bombástico de plástico para si
FMI Não há força que retorça o FMI

Discreto e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a imagem 'on the rocks' do cancro do tabaco
Enfio uma gravata em cada fato-macaco
E meto o pessoal todo no mesmo saco
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Não ando aqui a brincar, não há tempo a perder
Batendo o pé na casa, espanador na mão
É só desinfectar em superprodução!

FMI Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O heróico paranóico 'hara-quiri'
FMI Panegírico, pro-lírico daqui

Palavras, palavras, palavras e não só
Palavras para si e palavras para dó
A contas com o nada que swingar o sol-e-dó
Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó
A produtividade, ora nem mais, célulazinhas cinzentas
Sempre atentas
E levas pela tromba se não te pões a pau
Num encontrão imediato do 3º grau!

FMI Não há lenha que detenha o FMI
FMI Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI ...

Entretém-te filho, entretém-te, não desfolhes em vão este malmequer que bem-te-quer, mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalt'e-quer, messe gigantesca, vem-te vindo, vi-me na cozinha, vi-me na casa-de-banho, vi-me no Politeama, vi-me no Águia D'ouro, vi-me em toda a parte, vem-te filho, vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão, olha os pombinhos pneumáticos que te orgulham por esses cartazes fora, olha a Música no Coração da Indira Gandi, olha o Muchê Dyane que te traz debaixo d'olho, o respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, né filho? Nós somos um povo de respeitinho muito lindo, saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho? Consolida filho, consolida, enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o malmequer vai-te tratando do serviço nacional de saúde. Consolida filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo, o teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos, como o astro, não é filho? O cabrão do astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é? Pois claro, ganhar forças, ganhar forças para consolidar, para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta destabilização filha-da-puta, não é filho? Pois claro! Estás aí a olhar para mim, estás a ver-me dar 33 voltinhas por minuto, pagaste o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transação e estás a pensar lá com os teus botões: Este tipo está-me a gozar, este gajo quem é que julga que é? Né filho? Pois não é verdade que tu és um herói desde de nascente? A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote! Meu Fernão Mendes Pinto de merda, né filho? Onde está o teu Extremo Oriente, filho? Ah-ni-qui-bé-bé, ah-ni-qui-bó-bó, tu és 'Sepuldra' tu és Adamastor, pois claro, tu sozinho consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho? Mal eles sabem, pois é, tu sabes o que é gozar a vida! Entretém-te filho, entretém-te! Deixa-te de políticas que a tua política é o trabalho, trabalhinho, porreirinho da Silva, e salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala e ritmo de pop-xula, não é filho?
A one, a two, a one two three

FMI dida didadi dadi dadi da didi
FMI ...

Come on you son of a bitch! Come on baby a ver se me comes! Come on Luís Vaz, 'amanda'-lhe com os decassílabos que os senhores já vão ver o que é meterem-se com uma nação de poetas! E zás, enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares, zás, enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro de Cunhal, zás, enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros, zás, enfio-te a Natalia Correia no Sá Carneiro, zás, enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer e acabamos todos numa sardinhada ao integralismo Lusitano, a estender o braço, meio Rolão Preto, meio Steve McQueen, ok boss, tudo ok, estamos numa porreira meu, um tripe fenomenal, proibido voltar atrás, viva a liberdade, né filho? Pois, o irreversível, pois claro, o irreversívelzinho, pluralismo a dar com um pau, nada será como dantes, agora todos se chateiam de outra maneira, né filho? Ora que porra, deixa lá correr uma fila ao menos, malta pá, é assim mesmo, cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é? Preocupações, crises políticas pá? A culpa é dos partidos pá! Esta merda dos partidos é que divide a malta pá, pois pá, é só paleio pá, o pessoal na quer é trabalhar pá! Razão tem o Jaime Neves pá! (Olha deixaste cair as chaves do carro!) Pois pá! (Que é essa orelha de preto que tens no porta-chaves?) É pá, deixa-te disso, não destabilizes pá! Eh, faz favor, mais uma bica e um pastel de nata. Uma porra pá, um autentico desastre o 25 de Abril, esta confusão pá, a malta estava sossegadinha, a bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa... Tá bem, essa merda da pide pá, Tarrafais e o carágo, mas no fim de contas quem é que não colaborava, ah? Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, ah? Quem é que não se calava, quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, ah? Meia dúzia de líricos, pá, meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro, pá, isto é tudo a mesma carneirada! Oh sr. guarda venha cá, á, venha ver o que isto é, é, o barulho que vai aqui, i, o neto a bater na avó, ó, deu-lhe um pontapé no cu, né filho? Tu vais conversando, conversando, que ao menos agora pode-se falar, ou já não se pode? Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional tamanho familiar, ah? Estás desiludido com as promessas de Abril, né? As conquistas de Abril! Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, né filho? E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia, não é nada comigo, não é nada comigo, né? E os da frente que se lixem... E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada, precisas de paz de consciência, não andas aqui a brincar, né filho? Precisas de ter razão, precisas de atirar as culpas para cima de alguém e atiras as culpas para os da frente, para os do 25 de Abril, para os do 28 de Setembro, para os do 11 de Março, para os do 25 de Novembro, para os do... que dia é hoje, ah?

FMI Dida didadi dadi dadi da didi
FMI ...

Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho? Todos temos culpas no cartório, foi isso que te ensinaram, não é verdade? Esta merda não anda porque a malta, pá, a malta não quer que esta merda ande, tenho dito. A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém, não é isto verdade? Quer isto dizer, há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular! Somos todos muita bons no fundo, né? Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né? Somos todos, ou anti-comunistas ou anti-faxistas, estas coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para acolá, as palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole e o Zé é que se lixa, cá o pintas azeite mexilhão, eu quero lá saber deste paleio vou mas é ao futebol, pronto, viva o Porto, viva o Benfica, Lourosa, Lourosa, Marraças, Marraças, fora o arbitro, gatuno, bora tudo p'ro caralho, razão tinha o Tonico de Bastos para se entreter, né filho? Entretém-te filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos administradores, entretém-te, que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais, entretém-te filho, que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho, entretém-te, que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar, entretém-te, que o FMI trata da saúde ao Eanes, entretém-te filho e vai para a cama descansado que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada, milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos com computadores, redes de policia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá! Podes estar descansado que o Teng Hsiao-Ping está a tratar de ti com o Jimmy Carter, o Brezhnev está a tratar de ti com o João Paulo II, tudo corre bem, a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir amanhã nas tuas oito horas. A ver quem vai ser capaz de convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias, ou de te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de S. Pedro de Moel que se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia e nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra, finalmente o rio desaguou! Hão te convencer de que a culpa é tua e tu sem culpa nenhuma, tens tu a ver, tens tu a ver com isso, não é filho? Cada um que se vá safando como puder, é mesmo assim, não é? Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer, votas à esquerda moderada nas sindicais, votas no centro moderado nas deputais, e votas na direita moderada nas presidenciais! Que mais querem eles, que lhe ofereças a Europa no natal?! Era o que faltava! É assim mesmo, julgam que te levam de mercedes, ora toma, para safado, safado e meio, né filho? Nem para a frente nem para trás e eles que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para isso, né? Claro! Que se lixem as alternativas, para trabalho já me chega. Entretém-te meu anjinho, entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti, se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia, se hás-de plantar tomate para o Canada ou eucaliptos para o Japão, descansa que eles tratam disso, se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo! Descansa, não penses em mais nada, que até neste país de pelintras se acho normal haver mãos desempregadas e se acha inevitável haver terras por cultivar! Descontrai baby, come on descontrai, arrefinfa-lhe o Bruce Lee, arrefinfa-lhe a macrobiótica, o biorritmo, o euroscópio, dois ou três ofeneologistas, um gigante da ilha de Páscoa e uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas! Piramiza filho, piramiza, antes que os chatos fujam todos para o Egipto, que assim é que tu te fazes um homenzinho e até já pagas multa se não fores ao recenseamento. Pois pá, isto é um país de analfabetos, pá! Dá-lhe no Travolta, dá-lhe no disco-sound, dá-lhe no pop-xula, pop-xula pop-xula, iehh iehh, J. Pimenta forever! Quanto menos souberes a quantas andas melhor para ti, não te chega para o bife? Antes no talho do que na farmácia; não te chega para a farmácia? Antes na farmácia do que no tribunal; não te chega para o tribunal? Antes a multa do que a morte; não te chega para o cangalheiro? Antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir, cabrões de vindouros, ah? Sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu ah? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá, e eu? José Mário Branco, 37 anos, isto é que é uma porra, anda aqui um gajo cheio de boas intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pêlo, e depois? É só porrada e mal viver é? O menino é mal criado, o menino é 'pequeno burguês', o menino pertence a uma classe sem futuro histórico... Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz porra, quero ser feliz agora, que se foda o futuro, que se foda o progresso, mais vale só do que mal acompanhado, vá mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos! Deixem-me em paz porra, deixem-me em paz e sossego, não me emprenhem mais pelos ouvidos caralho, não há paciência, não há paciência, deixem-me em paz caralho, saiam daqui, deixem-me sozinho, só um minuto, vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e policias e generais para o raio que vos parta! Deixem-me sozinho, filhos da puta, deixem só um bocadinho, deixem-me só para sempre, tratem da vossa vida que eu trato da minha, pronto, já chega, sossego porra, silêncio porra, deixem-me só, deixem-me só, deixem-me só, deixem-me morrer descansado. Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado, eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto, eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrilho e a Vera Lagoa, deixem-me só porra, rua, larguem-me, zórpila o fígado, arreda, 'terneio' Satanás, filhos da puta. Eu quero morrer sozinho ouviram? Eu quero morrer, eu quero que se foda o FMI, eu quero lá saber do FMI, eu quero que o FMI se foda, eu quero lá saber que o FMI me foda a mim, eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se eu tornar a ir para o hospital, pronto, bardamerda o FMI, o FMI é só um pretexto vosso seus cabrões, o FMI não existe, o FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma, o FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio, rua, desandem daqui para fora, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe...

Mãe, eu quero ficar sozinho... Mãe, não quero pensar mais... Mãe, eu quero morrer mãe.
Eu quero desnascer, ir-me embora, sem ter que me ir embora. Mãe, por favor, tudo menos a casa em vez de mim, outro maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar e de me encontrar fugindo, de quê mãe? Diz, são coisas que se me perguntem? Não pode haver razão para tanto sofrimento. E se inventássemos o mar de volta, e se inventássemos partir, para regressar. Partir e aí nessa viajem ressuscitar da morte às arrecuas que me deste. Partida para ganhar, partida de acordar, abrir os olhos, numa ânsia colectiva de tudo fecundar, terra, mar, mãe... Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto, lembrar nota a nota o canto das sereias, lembrar o depois do adeus, e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal, lembrar cada lágrima, cada abraço, cada morte, cada traição, partir aqui com a ciência toda do passado, partir, aqui, para ficar...

Assim mesmo, como entrevi um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o azul dos operários da Lisnave a desfilar, gritando ódio apenas ao vazio, exército de amor e capacetes, assim mesmo na Praça de Londres o soldado lhes falou: Olá camaradas, somos trabalhadores, eles não conseguiram fazer-nos esquecer, aqui está a minha arma para vos servir. Assim mesmo, por detrás das colinas onde o verde está à espera se levantam antiquíssimos rumores, as festas e os suores, os bombos de lava-colhos, assim mesmo senti um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o bater inexorável dos corações produtores, os tambores. De quem é o carvalhal? É nosso! Assim te quero cantar, mar antigo a que regresso. Neste cais está arrimado o barco sonho em que voltei. Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grandola Vila Morena. Diz lá, valeu a pena a travessia? Valeu pois.

Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe, no fundo deste mar, encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco. Tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra, o meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui convosco e ser-vos alimento e companhia na viagem para estar aqui de vez. Sou português, pequeno burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro, faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto.

José Mário Branco - FMI -
apresentado ao público no Teatro Aberto em 1982.

domingo, 6 de julho de 2008

Charles-Edouard Jeanneret-Gris - Le Corbusier


voltamos às casas, ou não voltamos
quando se habita a ausência e todas as paredes brancas são vazias e neutras
habitamos, não habitamos… questiono-me às vezes, nos momentos em que o reboliço lá fora serena ou se afasta
bastar-nos-ão quatro paredes e um tecto? um chão de cimento?

talvez uma janela, uma porta, dentro, talvez uma cama e um corpo esquecido, boca, língua, discurso…
lembra-me como era, apenas e só como era, a casa, o cheiro, as curvas do pescoço ao peito
uma ideia que seja de como era…

não voltamos
não sei, sequer, o caminho de volta
habitar

talvez sejamos, afinal, deficientes, e as casas não sejam pensadas para nós
nós para as casas
eu
falo por mim


intemporal e de uma beleza extraordinária...

quarta-feira, 2 de julho de 2008



Um certo vazio proporcional, duração larga…
Luz. Espaço. Horizonte.

Hoje falta-me o tempo.

Começo a chegar onde queria, e ultrapasso as metas há muitos anos definidas.
Experimento um sabor novo...
Liberdade, ausência de amarras, do lixo que nos atrapalha tantos e tantos dias, como uma carraça.

Caminhei durante tanto tempo por entre escarpas sombrias sem conseguir alcançar uma linha de horizonte plana, larga, profunda e longínqua…

Hoje uma janela. Luz. Horizonte. Calor.
Simplicidade.

Só.