sábado, 30 de junho de 2007

Hervé Mitko, Demain c'était l'hiver

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querer dizer isto, querer dizer aquilo, e dizer nada

já um poeta escreveu sobre isto… acho

quero dizer: saudade. mas não sei

sinto
e ainda assim nada alivia o peso, nada preenche o buraco, nem há sequer um tampão para as horas em que penso, um tampão para o pensamento, um tampão para o sonho que de noite me assalta, deixando-me a guarda em baixo, de mãos vazias e braços pendurados

sonhei um dia que a vida seria simples, sempre julguei que fosse ser

persegue-me a complexidade, perseguem-me as correntes, o sufoco, o esgotar dos limites, a impossibilidade

e ainda assim, há que continuar a construir pontes

quarta-feira, 27 de junho de 2007


Henri Michaux
Pele

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele

David Mourão-Ferreira

quarta-feira, 20 de junho de 2007

múrmurio vermelho . Junho . 2007


Murmúrios do mar

"Paga-me um café e conto-te
a minha vida"

o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
de uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro

outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu, não, nunca choraste
por amores que se perdem

os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
E temos saudades desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo
tudo o que seremos depois

"pago-te um café se me contares
o teu amor"


José Tolentino de Mendonça

domingo, 17 de junho de 2007

Algures, num bar em Lisboa . Julho . 2006
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Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

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Há uns dias que me ocorrem estas questões, sem que tenha alguma explicação objectiva:
para que serve o amor? sim, para que serve? objectivamente?
que se há-de fazer ao amor?
há espaço para o amor na vida de cada um de nós?
o amor é uma flor?

(agora que o amor morreu, haverá mais espaço...?!)

o que é o amor?
porque me negam o direito ao amor?
porque me negam?
porque é que o meu amor há-de ser uma patologia peçonhenta?

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sábado, 16 de junho de 2007




Inhabited Vase . Josh Simpson

Nem sempre
a neve
cai do céu: às vezes,
explode numa flor.

Albano Martins

... o sal.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

U .m .a .. d .e .l .i .c .i .a . . .
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quinta-feira, 14 de junho de 2007

Sombras . Junho. 2007


as pessoas que andam na rua são feias
não porque sejam feias, mas porque andam tristes

a infelicidade cava-lhes sulcos na cara
apaga-lhes a luz do sorriso
e os olhos andam murchos e secos

as pessoas andam feias na rua e não se percebe até onde vai a infelicidade
se lhes entrou nas casas
se se deitou nas suas camas
se se instalou no peito
e não há nada mais triste que um coração feio

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Reflex(ã)o . Junho. 2007
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Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum


Ruy Belo
Templo Romano à noite . Junho . 2007
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Queria ter colocado aqui a tocar I Surrender de David Sylvian. Sem sucesso.
Mantendo-me fiel à vontade inicial, e embora sem música, aqui fica um pedaço:

I surrender - David Sylvian, para degustar.

I opened up the pathway of the heart
The flowers died embittered from the start

That night I crossed the bridge of sighs and I surrendered

I looked back and glimpsed the outline of a boy
His life of sorrows now collapsing into joy

And tonight the stars are all aligned and I surrender
My mother cries beneath a southern sky and I surrender

Recording angels and the poets of the night
Bring back the trophies of the battles that we fight

Searchlights fill the open skies and I surrender

Outrageous cries of love have called me back
Derailed the trains of thought, demolished wayward tracks

You tell me I've no need to wonder why I just surrender

I stand too close to see the sleight of hand
How she found this child inside the frightened man

Tonight I'm learning how to fly and I surrender

I've travelled all this way for your embrace
Enraptured by the recognition on your face

Hold me now while my old life dies tonight and I surrender
My mother cries beneath the open skies and I surrender

An ancient evening just before the fall
The light in your eyes, the meaning of it all

Birds fly and fill the summer skies and I surrender

She throws the burning books into the sea
"Come find the meaning of the word inside of me"

It's alright the stars are all aligned and I surrender
My mother cries beneath the moonlit skies and I surrender

My body turns to ashes in her hands
The disappearing world of footprints in the sand

Tell me now that this love will never die and I'll surrender
My mother cries beneath the open skies and I surrender

...e for the love of life, para ouvir.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Cinzas . Falésia - Costa Vicentina . Maio . 2007
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Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
de quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma de quem já só por dentro se
ilumina
e surpreende
e por fora é
apenas peso de ser tarde. Como é
amargo não poder guardar-te
em chão mais próximo do coração.

Daniel Faria

terça-feira, 5 de junho de 2007



Viagem ao luar sobre o mar. 2007.

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A Flauta Vertebrada

A todos vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.

Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balanço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.

Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.


Vladimir Maiakovski

ps - não resisti a este...

domingo, 3 de junho de 2007

Fim de dia junto à falésia.2007
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Os meus dias constroem-se a partir de uma matriz antiga, insonsa, balofa. Quanto mais anestésico for o ar melhor. Quanto maior a embriaguez menos contundente a memória.
A razão do meu tamanho, esmagada pelo sol, pelo silêncio, pelas fronteiras.
Tenho as minhas pequenas coisas: os meus quadros, desenhos, esculturas, livros e pedras. Não tenho a essência, calor.
Tenho o meu trabalho, que já não me satisfaz como antes, talvez por ter percebido as limitações que julguei saber e conseguir ultrapassar. Dez anos depois era suposto já ter feito mudar a face desta terra, e no entanto, tudo permanece na mesma.
A face, a terra, a casa… adensou-se o ar, enegreceu-se a luz. Se não saio daqui morrerei mais cedo engasgada na minha frustração. Ou isso ou mais vale destruir tudo em volta e começar de novo. Começar-me a construir pessoa, tal e qual como eu sei que sou, e deixar o mundo entregue à sua sorte.