Mostrando postagens com marcador Eugénio de Andrade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Eugénio de Andrade. Mostrar todas as postagens

domingo, 10 de maio de 2009

Robert and Shana ParkHarrison, Bloodroot.
.
.
.
Há uma espécie de massa densa que pesa no peito, como quando nos sentimos interiormente assombrados, ensombrados.
Dentro uma névoa, casulo, e uma espécie de tendência de auto-destruição interior para apagar os passos, partir os fios que se tecem e nos norteiam, e fundeiam num ancoradouro que sabemos não ser, correr, rasgar e sair para o sol.
.
.
.

Robert and Shana ParkHarrison, Mourning Cloak.


A tua vida é uma história triste.
A minha é igual à tua.
Presas as mãos e preso o coração,
Enchemos de sombra a mesma rua.

A nossa casa é onde a neve aquece.
A nossa festa, onde o luar acaba.
Cada verso em nós próprios apodrece,
Cada jardim nos fecha a sua entrada.


Eugénio de Andrade, em As Mãos e os Frutos.



Robert and Shana ParkHarrison, Summer Arm

domingo, 26 de abril de 2009




Surdo, Subterrâneo Rio

Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.

Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
... surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?

Eugénio de Andrade

segunda-feira, 9 de março de 2009



Mar, Mar e Mar

Tu perguntas, e eu não sei,
eu também não sei o que é o mar.

É talvez uma lágrima caída dos meus olhos
ao reler uma carta, quando é de noite.
Os teus dentes, talvez os teus dentes,
miúdos, brancos dentes, sejam o mar,
um mar pequeno e frágil,
afável, diáfano,
no entanto sem música.

É evidente que minha mãe me chama
quando uma onda e outra onda e outra
desfaz o seu corpo contra o meu corpo.
Então o mar é carícia,
luz molhada onde desperta
meu coração recente.

Às vezes o mar é uma figura branca
cintilando entre os rochedos.
Não sei se fita a água
ou se procura
um beijo entre conchas transparentes.

Não, o mar não é nardo nem açucena.
É um adolescente morto
de lábios abertos aos lábios da espuma.
É sangue,
sangue onde outra luz se esconde
para amar outra luz sobre as areias.

Um pedaço de lua insiste,
insiste e sobe lenta arrastando a noite.
Os cabelos de minha mãe desprendem-se,
espalham-se na água,
alisados por uma brisa
que nasce exactamente no meu coração.
O mar volta a ser pequeno e meu,
anémona perfeita, abrindo nos meus dedos.

Eu também não sei o que é o mar.
Aguardo a madrugada, impaciente,
os pés descalços na areia.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Dia Mundial do Ambiente
...é importante dar pequenos passos para mudar o mundo...



O sal da língua

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

Eugénio de Andrade

terça-feira, 3 de julho de 2007

Barnett Newman - Canto XVI


Só as tuas mãos trazem os frutos.
Só elas despem a mágoa
Destes olhos, choupos meus,
Carregados de sombra e rasos de água.

Só elas são
Estrelas pendurdas nos meus dedos.
- Ó mãos da minha alma,
flores abertas aos meus segredos.

domingo, 17 de junho de 2007

Algures, num bar em Lisboa . Julho . 2006
.
.
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade