quinta-feira, 31 de maio de 2007

Riscos

Queimada, Maio, 2007

Acho que o amor é mais que carne e desejo. É mais que o instante imediato.
O amor sente-se, como a uma impressão, uma certeza dentro de nós. Ele não se materializa em nada. Não se pode exigir que alguém prove que nos ama. Qualquer tentativa de nada servirá, pois o amor não se prova. Nenhuma prova material pode conferir a certeza do amor, senão essa impressão que se sente, dentro, da existência do amor.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

...

Agora, apodrecer.
Nas ruas, no suor das mãos amigas dos amigos, na pele dos espelhos...
desespero sorrido, carne de sonho público, montras enfeitadas de olhos...

...mas apodrecer.

Bolor a fingir de lua, árvores esquecidas do princípio do mundo...
"como estás, estás bem?", o telefone não toca! devorador de astros...

... mas apodrecer.

Sim, apodrecer
de pé e mecânico,
a rolar pelo mundo
nesta bola de vidro,
já sem olhos para aguçar peitos
e o sol a nascer todos os dias
no emprego burocrático de dar razão aos relògios,
cada vez mais necessários para as certidões da morte exata,

Sim, apodrecer ...

"...as mãos, a còlera, o frio, as pálpebras, o cabelo
a morte, as bandeiras, as lágrimas, a república, o sexo...

... mas apodrecer!

Sujar estrelas.

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Palavras punhais


1

Todos os dias os ministros dizem ao povo
como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
ele nasceria por certo fora do lugar.

2

E também difícil, ao que nos é dito,
dirigir uma fábrica. Sem o patrão
as paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
ele nunca chegaria ao campo sem
as palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
de outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.

3

Se governar fosse fácil
não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
e se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
que há necessidade de alguns tão inteligentes.

4

Ou será que
governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
são coisas que custam a aprender?

Bertold Brecht

terça-feira, 22 de maio de 2007

De Espanha...

Depois dos cidadãos romenos, a comunidade portuguesa é a segunda maior da União Europeia a residir e a trabalhar em Espanha. Os dados, avançados ontem pelo Ministério do Trabalho e dos Assuntos Sociais espanhol (MTAS), indicam que, em Abril passado, estavam registados na Segurança Social do país vizinho um total de 75 307 portugueses, número batido apenas pelos romenos (186 812).
.
.
Pois eu tenho, cada vez mais, vontade de pertencer a estes numeros.

domingo, 20 de maio de 2007

Vácuo

Certas vezes gostava de saber todas as respostas, e por alguns momentos viver a saber a verdade absoluta, ter a certeza de tudo e saber qual o caminho certo.

Saber que segredos se escondem, saber que pensamentos mais ímpios se levantam dentro, perceber as encruzilhadas em que me deixam.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Frasco vazio

Desenho de Luis Soares, Vermelho.

Sinto-me mais só do que alguma vez senti, porque se pode estar só e ainda assim sentir que nos compreendem, e assim sentir que se vive uma solidão acompanhada. Mas não.
Também é disso que se trata o amor: compreender, acompanhar, amparar, partilhar, apoiar.
Não me sinto infeliz, nem amargurada. Na verdade não sinto nada… de bom ou mau. Estou num limbo quente de Primavera.
Sinto-me sozinha, como se estivesse dentro de um frasco de vidro transparente, cristalino, e à distância do meu braço e mão, mas não a suficiente, estivesse todo o doce que alguém alguma vez pudesse querer.

O frasco não existe. O doce também não. São imagens. Eles são apenas uma metáfora… que tu jamais compreenderás.

Essas paredes que impedem que mergulhemos são feitas da tua incompreensão pelo meu mundo. O vazio, este vácuo que se criou entre as paredes e a pele, os valores que simplesmente construí e interiorizei ao longo desta breve existência, que não se deixam corromper e apagar pelo contraditório, como desejas.

Sempre vivi um pouco dos outros, do contágio da felicidade dos outros, daqueles que amo, e sempre me conheci a abdicar de algumas coisas que queria, por sentir que outras fariam a diferença para alguém e que essa felicidade me contagiaria. Essa felicidade contagiante, que vem de fora é essencial à minha sobrevivência, porque a interior é-me insuficiente, um pouco como a tua felicidade me é importante, razão pela qual entendo que se não és feliz com o que sou, nos devemos deixar ir por caminhos diferentes.
Ter alguém ao lado cujo amor é exigente ao ponto de não partilhar, não me fará nunca inteira. Acho que se morre todos os dias um pouco mais do que seria normal quando se vive como um objecto de adoração e posse exclusiva, um objecto material.
Deus…
Eu só gostava de te chapar estas coisas na cara, abrir-te a cabeça e enfia-las lá dentro! Fazer-te compreender!

quarta-feira, 16 de maio de 2007

nego-te...

Robert e Shana ParkeHarrison, Stolen Summer, 2006.


não podes ter o que não é susceptível de posse
não podes ter o que existe e não sobrevive ao ímpeto e ao capricho

quando tecestes estes fios invisíveis, amarras inquebráveis,
quando aprisionaste o meu peito, me lançaste um feitiço…

não entendo

o teu umbigo
o centro do mundo

amor louco

não podes ter o que não compreendes
nego-te o meu amor por ti


Robert e Shana ParkeHarrison, Interlude, 2006.

Homelands, de Nitin Sawhney

Elizabeth Ernest, Silver Apple, 2000


[...]
Tudo o que quiser...
Tem que entender


Nas palmas da mão...
Se tiver porquê

Frágil nessa terra
Fácil derrubou
Quando jogou fora
Tudo acabou...

segunda-feira, 14 de maio de 2007

O Poeta, de Rainer Maria Rilke

Lidia Corneli


Já te despedes de mim, Hora.
Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: que fazer da boca agora?
Que fazer do dia, da noite?

Sem paz, sem amor, sem teto,
Caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afecto
Fica mais rico e me devora.

Rainer Maria Rilke

sábado, 12 de maio de 2007

Da loucura miudinha

Nessy

O melhor plano para nos afastarmos da orquestração auto-destrutiva é mantermo-nos ocupados com uma segunda paixão, material, tangível, moldável. Não deixar espaço à memória, não deixar portas abertas, não deixar a loucura entrar, não responder à provocação.
Não sucumbir à loucura de ouvir que o amor que tivemos uma certa vez foi falso. Ouvir que não acreditam em nós quando dizemos que amamos, mas nem todo o amor é possível, nem todo o amor é são.
Eu também não acreditaria.
Por vezes, para acreditarmos no absurdo, é preciso passar por ele.
Ou talvez esta certeza não seja mais que uma grande névoa que ainda encobre o que está para além do estado gasoso e imaleável dos dias, da erupção à flor de pele, da pele que arde com o sal, da dor fina e quase imperceptível.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Fragile Wind, de Nitin Sawhney

Humberto Boccioni

[...]
inside the dark deepest part of my mind through sunshine and rain idle dreams keep my sane
[...]

quarta-feira, 9 de maio de 2007

As velas da memória, de Ruy Belo

Helena Kvarnsträm, Montreal, Outubro 2006



Há nos silvos que as manhãs me trazem
chaminés que se desmoronam:
são a infância e a praia os sonhos de partida

Abrir esse portão junto ao vento que a vida
aquém ou além desta me abre?
Em que outro mundo ouvi o rouxinol
tão leve que o voo lhe aumentava as asas?
Onde adiava ele a morte contra os dias
essa primeira morte?
Vinham núpcias sem conto na inconcebível voz
Que plenitude aquela: cantar
como quem não tivesse nenhum pensamento.

Quem me deixou de novo aqui sentado à sombra
deste mês de junho? Como te chamas tu
que me enfunas as velas da memória ventilando: «aquela vez...»?

Quando aonde foi em que país?
Que vento faz quebrar nas costas destes dias
as ondas de uma antiga música que ouvida
obriga a recuar a noite prometida
em círculos quebrados para além das dunas
fazendo regressar rebanhos de alegrias
abrindo em plena tarde um espaço ao amor?
Que morte vem matar a lábil curva da dor?
Que dor me faz doer de não ter mais que morrer?

E ouve-se o silêncio descer pelas vertentes da tarde
chegar à boca da noite e responder

Ruy Belo

Maleficios da digestão

Gostava de ter uma secretária electrónica só para detectar quando é que as palavras e as ideias fervilham e flúem da cabeça para as pontas dos dedos. Nessa altura, trancava-me por fora dentro do gabinete, para não me deixar sair para almoçar.
Estou que nem um esparguete cozido para além do ponto al dente e nem com uma sesta à espanhola a coisa vai lá.

domingo, 6 de maio de 2007

Dor

Jennifer Shaw, Leaning Trees, 2003

Silêncio.
Apagar esta dor interior que se agarra como as carraças.
Caminhar até doer, por fim o cansaço e o sono, o sangue.
Hoje lancei-me uma vez mais pelas dunas. Percorri quilómetros perdida no desespero da ordem, procurando por entre o silêncio do vento e do mar... procurando.
Pensei que adormeceria, por fim, e me esqueceria. Amanhã acordaria de um pesadelo.

Assim fosse.

sábado, 5 de maio de 2007

A matéria das palavras, de Ana Hatherly


Estamos aqui. Interrogamos símbolos persistentes.
É a hora do infinito desacerto-acerto.

O vulto da nossa singularidade viaja por palavras
matéria insensível de um poder esquivo.

Confissões discordantes pavimentam a nossa hesitação.
Há uma embriaguês de luto em nossos actos-chaves.

Aspiramos à alta liberdade
um bem sempre suspenso que nos crucifica.

Cheios de ávidas esperanças sobrevoamos
e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária.

Com arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia de uma
perfeição
especialista em fracassos.

Estrangeiros sempre
agudamente colhemos os frutos discordantes.


Ana Hatherly