domingo, 17 de junho de 2007

Algures, num bar em Lisboa . Julho . 2006
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Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

5 comentários:

Entre os teus lábios disse...

O simples adeus.

Quando tudo desvance... e nada fica.

('não há nada que me peça água')

:)

Teresa Durães disse...

adoro este poema (apesar do seu significado)

bom dia

GRAFIS disse...

entre os teus lábios
Não há sede.
Ou, ainda, não havia água e já tudo secou.

teresa
boa noite :)

carpe diem disse...

esse poema é um dos mais belos que conheço...

serotonina disse...

para mim, é dos poemas mais lindos da língua portuguesa. Um dos meus preferidos. Muito bem escolhido e obrigada por mo teres recordado pois há muito tempo que não o lia.